OBRA-PRIMA
Ele realmente não se sentia bem. Uma bruta ressaca e aquela típica vontade de morrer que sempre cerca os desesperançados. Mas para ele ainda havia esperança, ainda que fosse pouca. Muito pouca. Olhou a porra do rosto no espelho retrovisor. O lado direito parecia o lado direito de um monstro, inchado, roxo, cheio de sangue seco e de sangue pisado. Que merda! Que grande merda!
Acendeu o cigarro e deu uma longa golada na última garrafa de cerveja. Nada disso faz diferença, pensou, nem a estrada, nem os pássaros, nem esse rio (porque o carro estava parado bem próximo do rio) nem o céu, nem porra nenhuma, se a gente vai pro saco, se a gente entrega a rapadura, se a gente vai embora, tudo isso continua, e o sol continua, e a chuva continua, que bosta! Estava mesmo perdendo as esperanças, ainda havia uma última, mas ele com certeza não ficaria com ela, era só uma questão de tempo.
Então terminou a cerveja e jogou a garrafa no rio. Que se fodesse a ecologia. Acendeu outro cigarro, que se fodesse a saúde também, e foi fumá-lo embaixo de uma árvore. Olhou o relógio. Ela estava atrasada. Porra! Ele tinha enfrentado toda aquela encrenca. Tinha apanhado mais que um cachorro vagabundo e agora ela se atrasava. Era mesmo pra qualquer um perder a paciência... e a esperança. Jogou a bituca do cigarro no chão e a apagou com a sola da bota. Tirou a gaita do bolso e começou a tocá-la, não tocava muito bem. De qualquer forma aquilo ajudava a passar o tempo.
Antes de terminar a primeira canção, porém, viu-a surgir junto ao Sol que nascia, no fim da estrada. Sorriu, era aquele último pouquinho de esperança. Ela veio vindo feito um gato, quando ele, o gato, anda meio de lado, com cuidado e sorrateiro. Usava um daqueles vestidos de hippie azul que ficavam tão bem nela. Ele levantou, guardou a gaita no bolso e limpou a parte de trás da calça. Sorriu, e o rosto machucado doeu.
- Nossa você está horrível, caubói. – Ela disse tentando tocar o rosto dele, mas ele evitou.
- Sua família, aqueles anjinhos, fizeram isto.
- Que merda!
- Não tem importância. Vamos? Não podemos perder tempo.
Ela sorriu de lado. Realmente parecia um gato. Olhou pro rio. Olhou para as árvores. Olhou para o céu e para o chão: nada disse.
- Que foi? – Ele perguntou – Qual é o problema?
- É que estou confusa, não tenho certeza de que estamos fazendo a coisa certa.
- Como assim?
- Não sei. Só sei que estou confusa.
- E só agora que você me avisa, Ana, que grande merda! Depois de tudo que eu me fodi, você vem me dizer que está confusa.
- Não tenho culpa é que...
- Faça-me um favor, volte pelo mesmo caminho que veio.
- Não precisa ser assim, Danilo.
- Como não? Eu arrisquei tudo. Isso não é brincadeira, porra, é a nossa vida, menina. É a minha vida. Não posso mais voltar pra casa. Não tenho mais nada.
- Desculpe... eu não queria...
- Tudo bem, não faz diferença. Pegue minha gaita, um último presente, e volte pra sua casa.
- Você vai ficar bem.
- Não, mas foda-se.
- Desculpe.
- Tudo bem.
- Caubói?
- Fala.
- Não posso aceitar a gaita.
- Pega logo a porra da gaita e sai da minha frente, pelo amor de Deus.
- Desculpe. – Ela ainda disse mais uma vez, entretanto ele não disse palavra. Ela virou de costas e foi caminhando pela estrada. Diminuindo aos poucos, ficando cada vez menor, sua imagem ficou estremecida, por causa do Sol e, por fim, desapareceu. Ele caminhou até o carro, um Maverick, é necessário dizer, apanhou no banco de trás uma espingarda calibre doze, apoiou-a no chão, tirou a bota e a meia, colocou o dedão do pé no gatilho, a boca no cano e pressionou o dedão pra baixo. O estrondo fez os pássaros voarem das árvores, junto à última esperança que escapou do corpo do rapaz.
Minutos depois, uma jovem artista, pintora medíocre de paisagens, chegou ao lugar. Antes de chamar a polícia resolveu pintar toda a cena.
E pintou uma obra-prima, porque a morte ainda estava por ali e deixou o ar mais denso e nenhum artista, ainda que fosse medíocre, poderia ficar indiferente a toda aquela atmosfera. As pessoas que viam a tela, mesmo vinte anos depois, ainda se emocionavam, sobretudo com o pé descalço do rapaz.
Daniel Lopes
domingo, 16 de novembro de 2008
OBRA PRIMA
Diario do Sonho domingo, 16 de novembro de 2008
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